Ambiente. Guerra na Ucrânia está a matar golfinhos no Mar Negro e consequências podem chegar ao Mediterrâneo – Observador

2022-06-03 20:38:14 By : Ms. HERE MAKERS

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Poluição sonora está a matar golfinhos no Mar Negro, bombardeamentos podem causar fugas de sulfeto de hidrogénio para o Mar de Azov. As consequências ambientais da guerra podem chegar ao Mediterrâneo.

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Ao largo da cidade de Sebastopol, na costa da Crimeia banhada pelo Mar Negro, as forças militares da Rússia dispararam a 22 de março uma salva de oito mísseis de cruzeiro 3M-14 Kalibr, lançados a partir de um navio da classe Buyan para noroeste, em direção ao centro da Ucrânia. O momento foi captado em vídeos, que mostram os projéteis com uma cauda incandescente a atravessar o céu sobre as ondas picadas do mar, deixando para trás um rasto de fumo no céu ao pôr do sol.

Video reportedly of a Russian Project 21631 Buyan-M small missile ship launching 8 Kalibr-NK cruise missiles from near Sevastopol. https://t.co/GcWqUpoXLh pic.twitter.com/VvU3l5yYCK

— Rob Lee (@RALee85) March 22, 2022

Muito antes de colidirem contra território ucraniano — projéteis como estes estão a atingir cidades como Kharkiv para destruir edifícios governamentais —, os mísseis começaram a fazer vítimas nas profundezas do mar. As ondas sonoras do estoiro produzido aquando do lançamento e, depois, os silvos que emitem ao longo da viagem espalham-se em todas as direções e propagam-se mar adentro. Em meios líquidos, propagam-se até mais rapidamente — três a quatro vezes mais do que no ar. E isso está a ter consequências para a vida marinha.

As evidências de que a guerra na Ucrânia está a fazer vítimas também na vida animal já deram à costa a mais de 400 quilómetros do porto de Sebastopol. Quatro dias depois daquele lançamento, a Fundação Turca de Investigação Marinha, sediada em Istambul, avisava que tinha detetado um “aumento incomum” de golfinhos-comuns-de-bico-curto mortos cujos cadáveres acabavam encalhados nas praias na costa ocidental da Turquia, voltadas para o Mar Negro. O fenómeno começou a observar-se ao longo do mês anterior — o que coincide com os primeiros dias de conflito armado na Ucrânia.

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Todos os golfinhos foram encontrados nos areais da bacia marítima entre a vila de Ormanli e a cidade de Sinope, a cerca de 322 quilómetros uma da outra. Os casos registados na Rede de Desembarque de Mamíferos Marinhos têm todos uma explicação: os animais morreram por afogamento “devido à interação da pesca”. O mistério não reside precisamente na causa direta da morte, mas em como estão a ser detetados tantos casos destes nesta altura do ano: “Ainda não está claro por que motivo estão concentrados nesta região nesta época do ano e porque é que as capturas acidentais com rede aumentaram tanto”, explica a Fundação em informações enviadas ao Observador.

Porque é que morreram pelo menos 80 golfinhos no Mar Negro desde o início da guerra na Ucrânia?

Há quatro teorias em cima da mesa: os desvios nas rotas dos golfinhos podem estar relacionados com as alterações climáticas, com o tráfego incomum dos navios, podem explicar-se por uma adaptação às migrações dos peixes ou com as “intensas atividades militares submarinas ou à superfície no norte”. Esta última é, no entanto, a explicação mais aceite, porque “há um excesso de poluição sonora” desde que a guerra começou, confirmou João Correia, biólogo marinho e fundador da Flying Sharks, uma organização que defende a sustentabilidade dos oceanos, ao Observador. “Este problema acontece com mais frequência a nível mundial. No Mar Negro, que é um mar relativamente pequeno, a guerra está a ter um profundo impacto”, refere o biólogo marinho.

Para navegar, os golfinhos utilizam um sentido chamado ecolocalização, que funciona de modo semelhante ao sonar de um barco. O ar inspirado à superfície através do orifício presente no topo da cabeça (o espiráculo) acumula-se em sacos nasais e depois é pressionado ao longo dos canais, fazendo vibrar os tecidos.

Essas vibrações são expulsas para a água através do melão, uma protuberância feita de tecido adiposo e fluidos, na cabeça dos golfinhos, que direciona as ondas sonoras numa frequência tão elevada que se torna inaudível para os humanos — os ultrassons. Quando eles atingem um objeto e são redirecionados, os golfinhos captam as ondas sonoras através da mandíbula e do ouvido. Quanto mais tempo as ondas sonoras demorarem a regressar aos animais, mais longe estão os objetos atingidos por elas. “Fazem um mapa tridimensional da realidade à volta deles”, sintetiza João Correia. Tal como fazem também as baleias ou os morcegos.

Mas as ondas sonoras produzidas e emitidas pelos navios de guerra (que também utilizam sonares para vasculharem o fundo marítimo), aviões militares, mísseis e bombardeamentos perturbam a ecolocalização dos golfinhos, causando desorientação e mal-estar generalizado. “Tem um impacto no sistema imunitário e motiva ataques por agentes patogénicos que, de outra forma, eram inócuos para o organismo dos animais”, explica o biólogo marinho. Basta que os golfinhos desenvolvam uma meningite para serem condenados à morte.

Esta pode, assim, ser uma das consequências mais evidentes do impacto da guerra na Ucrânia no ecossistema. Mas a 415 quilómetros de distância, do outro lado da Crimeia e na costa ucraniana banhada pelo Mar de Azov, há outro desastre à espera de acontecer. Ao longo dos 82 dias de resistência na fábrica de siderurgia Azovstal, as forças russas bombardearam as instalações — muitas vezes, violando o cessar-fogo acordado para a retirada de soldados feridos —, na tentativa de conquistar o controlo total sobre Mariupol. Mas uma das infraestruturas da fábrica é um depósito com milhares de toneladas de uma solução concentrada de sulfeto de hidrogénio, um gás mais denso que o ar e que é altamente corrosivo e venenoso.

▲ Vista aérea da fábrica de siderurgia de Azovstal, junto ao mar de Azov.

Se este composto, um subproduto da utilização de fornos de coque (combustível derivado do carvão betuminoso) na produção de ferro e aço, derramar para a água, “há uma ameaça de extinção completa” da vida marinha no Mar de Azov.

Foi o que avisou em meados de maio fonte oficial da Câmara Municipal de Mariupol, cujo autarca, Vadym Boychenko, pediu “a admissão imediata no local de especialistas internacionais e da ONU para estudar a situação e evitar uma catástrofe ambiental de classe mundial”. A confirmar-se uma poluição do Mar de Azov com sulfeto de hidrogénio, o problema não ficaria estancado naquela massa de ar: o composto venenoso podia migrar para o Mar Negro através do Estreito de Kerch; e daí para o Mediterrâneo pelo Estreito de Bósforo.

Por estar isolado, o Mar de Azov é uma das maiores preocupações dos ambientalistas, a par do delta do rio Danúbio e do golfo de Odessa. “É onde a biodiversidade é mais frágil, estas regiões ficam nos destinos de migração das aves”, explica a Fundação Turca de Investigação Marinha. É nestas águas que habita uma alga vermelha em perigo de extinção, a filófora, habitat de espécies marinhas como bivalves, esponjas e ascídias.

Mas no Mar Negro a situação é igualmente preocupante porque já é naturalmente rico em sulfeto de hidrogénio: 92% da água abaixo dos 150 metros contém este composto químico. É assim porque este mar está praticamente isolado dos oceanos abertos e acumula em profundidade este produto, proveniente da decomposição da matéria orgânica vinda da superfície ou arrastada até lá pelos rios.

Ora, o Mar Negro está altamente estratificado. Por um lado, quando recebe a água do Mediterrâneo, ela desce em profundidade por ser salgada e, por isso, também mais densa — misturando-se com o sulfeto de hidrogénio que já tem naturalmente. Mais à superfície fica a água doce que esse mesmo mar recebe dos rios.

É esta camada mais superficial que funciona como um “escudo” que impede o sulfeto de hidrogénio presente em profundidade de contaminar todo o mar e os outros corpos de água com que está em contacto. Mas se esse “escudo” vier a ser contaminado com água do Mar de Azov poluído por fugas vindas da Azovstal, o novo sulfeto misturar-se-á com as camadas de água que não estão naturalmente poluídas.

É um perigo real, mas improvável — tal como aconteceu quando se temia que as forças militares russas expusessem o material radioativo das centrais nucleares de Chernobyl e de Zaporíjia. É que a poluição do Mar de Azov com sulfeto de hidrogénio seria um desastre natural, não apenas para a própria Ucrânia como para todos os territórios banhados por aquelas águas — e isso inclui a Rússia e a região anexada da Crimeia.

E, segundo o Departamento de Saúde da Universidade de Virginia, nos EUA, uma vez libertado, este composto químico pode causar irritações nas vias respiratórias e nos olhos, edemas pulmonares, paralisia do nervo olfático e, quando em concentrações muito elevadas (200 a 300 partes por milhão), a morte imediata.

Central nuclear de Zaporíjia foi campo de batalha — e os russos já controlam as instalações. Qual o pior cenário possível e como evitá-lo?

Outros problemas podem ser menos evitáveis, avisou a Fundação Turca de Investigação Marinha: “A ameaça para espécies que escolhem estas regiões para reprodução, alimentação, migração e desova, onde bombardeamentos e tiroteios ocorrem diariamente, é inevitável.” Ninguém sabe a quantidade de combustível que escapou dos navios atingidos em ataques aéreos e afundados junto à margem de Mariupol, voltada para o Mar de Azov. Mas os gases venenosos dessa gasolina serão libertados para a atmosfera e vão inevitavelmente atingir também terra firme quando forem depositados pela chuva.

▲ Mapa do Mar Negro e do Mar de Azov.

O rio Dnieper, transformado numa verdadeira frente de batalha, está a ser poluído com bases e substâncias químicas tóxicas libertadas pelas munições de ambos os lados da barricada. Mas este é o mesmo curso de água que serve de fonte de irrigação agrícola; e de onde vem a água potável consumida nas cidades serpenteadas pelo rio. Segundo as autoridades turcas, há mesmo evidências de que o leito do rio está a ser alterado para servir de obstáculo contra os atacantes — mas isso tem o reverso da medalha: os poluentes também são arrastados para áreas onde, de outra forma, não chegariam tão depressa. É uma “guerra hidráulica”, diz a fundação de investigação marinha.

Mas isso pode violar a Convenção sobre a Proteção do Mar Negro contra a Poluição, também conhecida por Convenção de Bucareste. Este é um acordo assinado entre os seis Estados banhados pelo mar em abril de 1992 — Bulgária, Geórgia, Roménia, Rússia, Turquia e Ucrânia — em que se estabeleceu o compromisso em três pontos: o controlo de fontes de poluição terrestres, a limitação do despejo de resíduos e a ação conjunta em caso de acidentes, incluindo derramamentos de petróleo. A missão final era “prevenir, reduzir e controlar a poluição” no Mar Negro.

Ainda assim, a própria Rússia admitiu que está a instrumentalizar os cursos de água a seu favor, depositando minas sobretudo no Mar de Azov e no Estreito de Kerch. Isso compromete o transporte marinho e as rotas comerciais, nota a Turquia, e obrigou mesmo à proibição das pescas durante a noite entre a cidade turca de Igneada e a ilha de Kefken. É “uma situação compreensível”, considerou a fundação, uma vez que o objetivo é salvaguardar a vida dos pescadores. Mas pode ter consequências económicas desastrosas: “No Mar Negro, o stock de pesca para Turquia é como o stock de cereais para a Ucrânia. Mais de 60% das capturas de peixe da Turquia são provenientes do Mar Negro”.

Só o tempo dirá a verdadeira dimensão do impacto ambiental da guerra na Ucrânia. Não há estatísticas para quantas espécies de peixes, e quantos indivíduos de cada espécie, morreram à conta das minas que caíram nos corpos de água em torno da Ucrânia. A Turquia avisa mesmo que esta frente de batalha está francamente ignorada pelas autoridades internacionais — e pede a atenção das Nações Unidas “antes que seja tarde demais”.

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